Enquanto a Guerra Fria comia vidas e ceifava liberdades, sob o pretexto do combate ao inimigo comum da civilização (o capitalismo ou o comunismo, dependendo do ponto de vista), o futebol era apenas um instrumento de manipulação ideológica sobre as massas ignorantes, e vivia relegado ao seu papel de circo não oficial dos regimes políticos daqui ou de acolá.
A Guerra Fria se desenvolvia. Enquanto a esquerda se preocupava em debater o caráter ideológico de Trotsky e sua ligação com a teoria marxista, os regimes comunistas do leste massacravam as liberdades individuais enquanto desenvolviam simulacros de liberdades coletivas. Stálin, Mao e Pol Pot reinavam absolutos com suas corjas de exploradores do povo, enquanto os esquerdistas combatiam as ditaduras capitalistas. Os direitistas desenvolviam a teoria do bem-estar social, enquanto a fome eliminava sumariamente os africanos. Enquanto chovia agente laranja no Vietnã, Larry Flint e Bill Gates multiplicavam cifras em suas contas.
Quando finalmente despencou a cortina de ferro, tudo o que se podia ver era a estupidez sob a qual se haviam fundado as sociedades humanas do século XX, meros reflexos do fracasso sociológico acumulado em 40 ou 50 séculos. Mas cada pessoa enxerga a realidade por uma perspectiva diferente. E enquanto os esquerdistas viam a verdade sobre as ditaduras do Leste, os direitistas viam as distâncias econômicas e produtivas se encurtarem, e uma tal globalização aparecer na ordem do dia. Mais do que isso, eles viram um mundo de possibilidades financeiras, e uma infinidade de opções de investimentos. E enquanto os esquerdistas discutiam se Lech Walesa e Josip Tito teriam sido também esquerdistas, os direitistas aglutinavam capital e criavam novos fluxos econômicos, a princípio indecifráveis.
E no Brasil, a situação se redesenhou de forma que continuássemos com nosso importante papel de pilar de sustentação dos países desenvolvidos. Enquanto o pessoal do PT acusava o pessoal do PCdoB de serem stalinistas (o que seria elogio até bem pouco tempo), o pessoal da ARENA passava por um processo de cirurgia plástica para esconder as cicatrizes do passado, chegando a mudar até mesmo o nome (primeiro PDS, depois PFL, depois DEM... chegando a lembrar aquelas pessoas que entram para o programa de proteção à testemunha), o pessoal do PMDB se fragmentava diante da falta de um inimigo comum, e o PSDB nascia como promessa de desenvolvimento econômico e social dentro do modelo estadunidense. Depois, o PT virou direita (aliado aos stalinistas do PCdoB), o PSDB virou direita anti-petista, a ARENA/PDS/PFL/DEM continuou sendo direita anti-tudo, e o PMDB continuou sem rumo, mas com um tamanho assustador. A história é complicada, e cada um que tire suas próprias conclusões.
À despeito dessas discussões mesquinhas e desnecessárias, o Brasil continuou no mesmo caminho que sempre seguiu. Mas, com a tal globalização da economia, deixamos de ser mero país agro-exportador. Agora, somos país agro-exportador, petro-exportador, metal-exportador, bunda-exportador e, o ponto que cabe aqui discutir, somos um país craque-exportador. Sim, o mercado global descobriu o futebol, e a Europa passou a explorar nossa produção de jogadores a preços módicos, da mesma forma como fazia e faz com nossas commodities agrícolas. E, da mesma forma como acontece historicamente com a produção agrícola, estamos sofrendo uma crise no abastecimento interno também na produção de jogadores. Se antes os países que giravam à órbita brasileira tinham por função garantir o nosso consumo de trigo e arroz, hoje eles nos exportam Defedericos, Guiñazus e Maxis López, para compensar nossa falta de Ronaldinhos Gaúchos, Kakás e Didas.
E o futebol brasileiro mudou não apenas no caráter de abastecimento, antes interno, hoje externo. Mudou também na sua função social. Durante a Guerra Fria o futebol era o esporte das massas, e tinha o papel de levar os brasileiros aos estádios no fim de semana, para evitar que estes optassem por gastar seu tempo vago com atividades subversivas como ir à Igreja (onde pululavam os adeptos da Teologia da Libertação) ou aos sindicatos. Quanto mais lotados os estádios de futebol, melhor era para o país. E quanto melhor o nível do futebol nacional, maior a satisfação do brasileiro com sua vida cotidiana, e menor o risco de subversão da ordem.
Hoje, o quadro se inverteu por completo: o nível medíocre do futebol apresentado dentro das terras tupiniquins garante que o torcedor não vá sair de casa no fim de semana, e assim todos lucram. O governo lucra com o povo dentro de casa, alheio ao que acontece fora das paredes e grades do quintal, as emissoras de TV lucram com a transmissão das partidas, e o mercado global lucra com o consumismo massificado gerado pelas propagandas dessas transmissões. Só quem não lucra são as bilheterias dos estádios, mas isso pouco importa num cenário mais amplo. A função social do futebol brasileiro, hoje, se restringe a servir de trampolim da miséria à ostentação para uns poucos sortudos.
E eu, como torcedor do modesto mas enorme Santo André, agarro-me à utopia de um futuro melhor para as agremiações nacionais, já que ainda não aprendi a simpatizar com Real Madrid, Chelsea, Milan e outros clubes cuja existência eu ignoraria, se estivesse vivendo em 1970. Espero vacas gordas, embora a tendência mercadológica me indique um futuro de trevas no futebol brasileiro, no qual já começam a aparecer Red Bulls, Pães de Açúcar e Votoratys, enquanto mínguam Novorizontinos, Jabaquaras e Santas Cruzes.
P.S: postei nesse blog porque sei que só babacas se darão ao trabalho de ler isso.
2213268 Babacas
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